Acabo de ler
esse conto incrível do David Foster Wallace (DFW, daqui pra frente) chamado “A
pessoa deprimida”. O DFW é um autor americano que escreve insanamente bem e que
eu, pra minha vergonha e tristeza (como, até agora, consegui viver sem ele?!),
conheço há tão pouco tempo que nem sou capaz de pronunciar mais nada a respeito
do sujeito a não ser esse juízo bobo e encantado: o cara escreve bem pacas.
Pois esse conto
fala de uma mulher depressiva, tão obcecada com seu próprio estado depressivo
que a maior parte da sensação de sufocamento que o conto te provoca (e ele é
genialmente construído numa rede de comentários e notas de rodapé num jargão
psiquiátrico conscientemente irônico e exaustivo) provém antes do
autocentramento sufocante, onipresente e pesadelístico dessa personagem (cuja
sensação você, leitor, melhor experimenta do que racionalmente compreende) do
que de uma descrição objetiva ou razoável da doença de que ela sofre. A
genialidade está, me parece, em abolir qualquer chance de julgamento objetivo: no
final ficamos mesmo sem saber se a pessoa deprimida em questão merece nossa
ilimitada compaixão e tolerância inesgotável ou se na verdade o melhor que
podemos fazer por ela é dar-lhe, isso sim, um tremendo chacoalhão e mandá-la
parar de ser tão irritantemente infantil e autocentrada e depois mandá-la
praquele lugar, quem sabe. O genial é que
essa impossibilidade de julgar que nos toma enquanto leitores é justamente o
que caracteriza (ou uma das coisas que caracterizam) o estado de alguém que
sofre de depressão. A incapacidade ou imensa dificuldade de tomar decisões, ao
lado de um autocentramento que paralisa e esgota, é um traço frequente no
quadro clínico da pessoa deprimida. Isso por um lado. E, por outro, a
impossibilidade (ou pelo menos dificuldade) de julgar, junto com algum nível de
excesso de preocupação com o próprio estado psicológico, parece ser uma
característica mais ou menos generalizada da vida adulta urbana na
pós-modernidade da qual poucos de nós conseguem escapar (e agora vou ali
esfregar pimenta na língua pra ver se paro de falar bobagem enrolada).
Eu não tenho
depressão e também não tenho interesse em ter, obrigada – às vezes desconfio
que exista essa espécie de mercado sutil (ou nem tão sutil) pronto pra te empurrar
algum distúrbio psicológico com o qual você pode etiquetar algum aspecto mais
espinhoso e idiossincrático da sua vida e assim supostamente amenizá-lo ou
resolvê-lo – não tenho nenhum interesse em ter... mas muitas vezes é exatamente
o mesmo tipo de indecisão e autocentramento paralisante que me atormenta e, ao
mesmo tempo, faz eu me sentir especialmente única, até eu enfim me dar conta de
que essa indecisão e esse autocentramento não são nada idiossincraticamente
meus e nem misticamente me escolheram pralgum papel ou missão pra qual sou
insubstituível, mas são sim, a indecisão e o autocentramento, coisas,
tchan-tchan-tchan-tchan, meramente humanas. O que não nos torna menos especiais
e idiossincráticos, a nós, que desse dado generalizado padecemos (do mesmo modo
que compartilhar outros dados comuns ao gênero humano, tais como ter fome, frio
e sono, não nos faz menos especiais, únicos, insubstituíveis, cada um de nós.
Porque eu sinto fome igual a todos vocês, mas às vezes a minha fome só pode ser
saciada por uma combinação exata e quase irreproduzível de brigadeiro, bolacha
maisena e geleia de damasco. Aberrantemente único. Brincadeira.)
(E não parei de
falar bobagem enrolada... tsc.)
O que o DFW
acaba de me fazer pensar com esse conto genial dele é que pra cada vez em que
eu me sinto linda e insuportavelmente única por, de um jeito supostamente muito
estranho, só conseguir aplacar alguma angústia existencial de origem variada
com um pedaço de chocolate meio-amargo eu poderia, ao invés disso, ter perdido
meio minuto considerando que alguém, nalgum outro recanto, sente talvez uma
angústia mais afiada que a minha e pensa em uma forma ainda mais inédita e
estranha de aplacá-la. E com isso eu entenderia um pouco mais do mundo.
Nota: DFW sofria
de uma depressão profunda e crônica desde a adolescência e que foi a causa da
sua morte aos 46 anos de idade. A experiência pessoal da doença a meu ver só
tornam o conto “A pessoa deprimida” ainda mais pungente, complexo e
interessante. Este meu texto não tem, portanto, qualquer intenção de desqualificar
as pessoas que sofrem com a doença em questão e muito menos questionar a
existência médica e real deste e de outros distúrbios psiquiátricos. No mais,
leiam o conto dele (além de tudo o que dele quiserem e puderem encontrar...).
Por Hannah
Ou melhor,
quase verdade. Na real a combinação que sacia a minha fome exclusiva inclui
ainda um pedaço de chocolate meio-amargo em estado de semi-liquefação.
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